11 outubro 2006

LIBERDADE DA SAÚDE


O único fim pelo qual se justifica que a humanidade se intrometa na liberdade de acção de um qualquer dos seus membros é a própria protecção. A única finalidade pela qual o poder pode, com pleno direito, ser exercido sobre um membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade, é evitar que prejudique os outros. O seu próprio bem, físico ou moral, não é justificação suficiente. Ninguém pode ser obrigado justificadamente a realizar determinados actos, por isso ser melhor para ele, por isso o tornar mais feliz, porque – na opinião dos outros – fazê-lo seria mais acertado e mais justo. A única liberdade que merece esse nome é a de procurar o nosso próprio bem, pelo nosso próprio caminho, desde que não privemos os outros do seu ou os vamos impedir que se esforcem por consegui-lo. Cada um é o guardião natural da sua saúde. A humanidade ganha mais consentindo que cada um viva á sua maneira que obrigando-o a viver á maneira dos outros.

Hoje em dia vivemos num autêntico ‘estado terapêutico’ cujo dogma central afirma que é mau tudo aquilo que vai contra a saúde e bom tudo aquilo que a favorece. Apesar de ser um bem a que todos temos irremediavelmente de aspirar, o estado não confia na iniciativa individual – os cidadãos nem sempre sabem o que lhes convém – e impõe a saúde por meio de proibições e castigos. A apetência pelo prazer privado opõe-se á exigência de saúde pública e como esta noção de saúde pública forma a essência de todas as noções oficiais do estado então a preservação da saúde sobreleva-se a todos os restantes interesses individuais.
Se do ponto de vista pessoal o prazer é o sinal mais inequívoco do bom estado de ânimo e de corpo, do ponto de vista clínico, público, esse índice é enganoso e desprezável. O bom estado equivale, nessa perspectiva, ao bom funcionamento, á condição menos conflituosa socialmente e mais produtiva laboralmente. Do ponto de vista da saúde pública, os cidadãos estão sãos quando vão trabalhar e não fazem demasiada algazarra uns com os outros. Se os seus prazeres concordam com este tipo de saúde tanto melhor mas se interferirem de algum modo com as formas de obediência e rendimento social então convertem-se em doenças ou vícios que devem ser submetidos a tratamento.
Da saúde como prazer á saúde como bom funcionamento vai uma grande distância. A administração pública ocupa-se, antes de mais, da duração de vida como sendo o melhor indício de boa saúde. O prazer não conta pois o prazer desperdiça energia, tempo, etc. sem produzir nada em troca: quando a saúde é improdutiva converte-se numa forma subtil de doença. Vemos assim concretizar-se a ambiguidade do termo saúde conforme corresponde a uma reclamação privada ou a uma exigência pública.
Assim a administração intervém para proteger a saúde pública. Medidas de higiene pública, saneamento, vacinação obrigatória etc. são imprescindíveis para impedir epidemias. Mas noutros casos o que é imposto é uma muito determinada e discutível ideia de saúde, a que o indivíduo tem de submeter-se por razões científicas ou de ordem pública. Os exemplos mais notáveis são a doença mental e a droga.
Não há doenças mentais no sentido em que existem doenças do coração ou do fígado: ou existe uma lesão orgânica que afecta o comportamento ou só são doenças por uma perigosa facilidade de linguagem. Em geral os chamados ‘loucos’ pouco ou nada ganham em ser considerados como doentes em vez de agentes desviados. Recordemos que muitas vezes não existe lesão orgânica mas o que origina a ‘doença’ é a rejeição dos outros frequentemente interiorizada pela vitima, que teve pouca habilidade para fazer-se gostar pelos outros. Se algum deles é encerrado deve ser devido á segurança ameaçada daqueles que os rodeiam e não para seu próprio bem, como hipocritamente se procura fazer crer. O doente mental está nas mãos dos médicos tanto mais quanto mais vaga e inconcreta é a suposta doença.
No caso da droga nada há a objectar á assistência que se presta a pessoas que querem ver-se livres da influência de um qualquer tipo de fármaco. Mas a intervenção médica não reclamada pelo paciente, ou mesmo explicitamente recusada é algo de particularmente escandaloso. Do ponto de vista meramente penal a proibição do uso de determinadas substancias químicas que numerosas pessoas desejam tomar é tão incompatível com uma sociedade livre e plural como a proibição de determinados filmes ou determinados livros. Em casos como este o estado terapêutico torna-se totalitário e o conceito de saúde pública funciona de modo abertamente repressivo.
Não é função do estado imiscuir-se naquilo que as pessoas têm no estômago ou no sangue do mesmo modo que não é função sua intervir contra as ideias que trazem na cabeça. A função de uma saúde realmente liberal seria zelar pela qualidade e preço dos produtos postos á venda de forma a evitar os danos causados pela adulteração dos fármacos hoje proibidos, delinquência, trafico e altíssimo custo que trazem elevados danos á sociedade.




2 comentários:

Carlos disse...

Para este post inspirei-me nas minhas leituras de verão: Recomendo a leitura de:

O conteúdo da felicidade – Fernando Savater; Relógio d'água, 1995

Um lugar ao Sul disse...

Tu vez uma sociedade só de direitos, mas não de deveres e não posso concordar minimamente com tal opinião. Há uma linha muito ténue entre liberdade e libertinagem. Como referido no meu post http://umlugaraosul.blogspot.com/2007/12/obesidade.html não posso concordar com a libertinagem e irresponsabilidade das pessoas relativamente à alimentação irracional. O tipo de sociedade que pareces ter em mente é um pouco utópica e demasiado restritiva no sentido de interacção das redes sociais. O que quero dizer com isto é que a sociedade é interdependentes e a nossa atitude inevitavelmente influencia terceiros, e como tu dizes, quando afecta a liberdade dos outros merece ter uma posição definida por parte do Estado de Direito(s). Está provado que uma alimentação excessivamente desequilibrada provoca graves problemas na saúde, e de momento que esses problemas implicam internamentos em hospitais, baixas ao trabalho, entre outras situações, tudo com custos suportados pelas contribuições de todos e como se costuma dizer: “a minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro”.